Revisitando o artigo “De Gustibus Non Est Disputandum”, de Gary Becker e George Stigler (1977), este texto procura apresentar como a teoria econômica neoclássica assimilaria o papel das tradições e costumes quando estuda as decisões individuais. Depois de definir a tradição e os costumes desde a perspectiva institucional, busquei ilustrar como a teoria econômica ajudaria a compreender tanto a adesão à tradição quanto a diferença de reação às mudanças de ambiente entre indivíduos. Em seguida, termino por esboçar algumas intuições relativas aos princípios que regeriam a adesão à tradição. Que este trabalho sirva de homenagem à Gary Becker (1930-2014).
Homo Œconomicus e a Tradição
{1} Segundo Gary Becker e George Stigler (1977), uma objeção frequentemente feita à teoria econômica teria sido de que os gostos e escolhas individuais são fortemente condicionados pelos costumes e tradições. Isto quer dizer, alguns críticos da teoria econômica frequentemente propõem que as escolhas de consumo respondem muitas vezes às pressões sociais, às tradições e costumes de uma cultura, ou ainda, à fenômenos de imitação e de moda. A liberdade de decisão do consumidor, neste sentido, seria sensivelmente restringida ou condicionada. Tal perspectiva, imaginam, mostraria que a abordagem fundamentada no homo œconomicus, agente racional, maximizador, calculador e egoísta, é consideravelmente limitada por não explicar ou assimilar com destreza a influência das tradições. O foco da crítica busca, em alguma escala, enfatizar que os consumidores agiriam menos racionalmente do que se imagina, seguindo muitas vezes os impulsos ou estímulos de consumo oferecidos pela sociedade. A capacidade maximizadora de seu bem-estar estaria, na verdade, fortemente constrangida por fenômenos sociais que de certa forma cerceiam a conduta individual de consumo.
{2} No que diz respeito à crítica relativa à teoria econômica, Becker e Stigler (1977, p. 87) alegaram que: “A ‘traditional’ qualification to the scope of economic theory is the alleged powerful hold over human behaviour of custom and tradition.” Como os autores lembraram logo em seguida, enunciando as considerações do economista britânico John Stuart Mill:
“… the character and course of their actions is largely influenced (independently of personal calculations) by the habitual sentiments and feelings, the general modes of thinking and acting, which prevail throughout the community of which they are members; as well as by the feelings, habits, and modes of thought which characterize the particular class in that community to which they themselves belong… They are also much influenced by the maxims and traditions which have descended to them from other rulers, their predecessors; which maxims and traditions have been known to retain an ascendancy during long periods…” (Mill, p. 484)
{3} No entanto, o raciocínio econômico fundamentado na teoria tradicional pode bem explicar e tomar em consideração os fenômenos de pressão social ou a influência da tradição, sem que isto coloque em questão os fundamentos alicerçando os postulados da liberdade de consumo e o comportamento do indivíduo maximizador.
{4} Para integrar os costumes e tradições nas considerações relativas ao homo œconomicus, basta considerar que as tradições existem, fundamentalmente, pelo simples motivo de que elas promovem alguma espécie de benefício ou excedente (surplus) aos indivíduos, em larga escala, porque eles promovem alguma espécie de benefício social. Em outras palavras, os indivíduos aderem a certas tradições porque, levando em consideração os cálculos racionais que intencionalmente realizam no decorrer dos processos de arbitragem, eles aceitam que aderir a uma tradição qualquer, ou se comportar de maneira precisa, faz com que eles obtenham mais sucesso relativamente a um objetivo – ou conjunto de objetivos – que almejam, ao menos mais sucesso do que se deixassem de aderir a este costume. Como bem sublinhou Henri Lepage (1977, p. 357):
“Autrement dit, les coutumes et traditions existent parce qu’elles sont, non pas une donnée « négative » pour l’individu, mais une donnée « positive » apportant à l’individu plus qu’elles ne lui coûtent.”
{5} Mas o que seria, mais precisamente, uma tradição ou um costume? Tradições e costumes são nada mais do que normas sociais. Em outras palavras, instituições sociais enquadrando, promovendo ou condenando determinados tipos de comportamento. Douglas North resume bem, neste parágrafo, tanto sua definição do termo ‘instituição’ quanto a relativa importância deste conceito para o estudo em economia:
“Instituições são os constrangimentos aplicados a conduta humana. Elas estruturam as interações políticas, econômicas e sociais. Os constrangimentos podem ser informais (sanções, tabus, costumes, tradições, e códigos de conduta), ou formais (constituições, leis, direitos de propriedade). Ao longo da história, instituições foram impostas aos seres humanos para criar ordem e reduzir as incertezas associadas às trocas. Junto aos constrangimentos econômicos naturais impostos pelo meio-ambiente, as instituições definem (e limitam) o leque de escolhas, elas determinam os custos de transação, custos de produção, o nível de ‘realizabilidade’ e rentabilidade de uma atividade produtiva ou projeto econômico. Elas incrementam a conexão do passado com o presente e o futuro. A história é uma estória da evolução institucional na qual a performance económica só pode ser compreendida desde a compreensão desta evolução institucional. As instituições provêem as estruturas de incentivos de uma economia. Esta estrutura de incentivos envolve e molda a direção das mudanças económicas, levando ao crescimento, estagnação ou declínio.” (North, 1991, p. 2, traduzi)
{6} Fica nítido que, para North, o termo ‘instituição’ designa então uma estrutura de origem legal ou costumeira tendo por conteúdo um conjunto de normas objetivando a organização da sociedade ou do Estado. Ele reagrupa o conjunto de regras formais (de jure) e informais (de facto) governando as interações sociais e os comportamentos individuais. Qualquer que seja a perspectiva de abordagem, as instituições transmitem essencialmente um conjunto de normas de conduta e sanções estruturando as interações humanas. São regras que limitam, em uma determinada escala, o leque de comportamentos, decisões e ações individuais possíveis. Em sua abordagem institucional, a própria economia é um processo institucionalizado.
{7} Deste ponto de vista, a análise da influência das instituições não se distancia em nenhuma escala do restante das análises descrevendo os demais fenômenos econômicos e processos de interação social. Visto ainda que a economia poderia ser concebida como estudo da ação humana, as decisões individuais neste caso integram simplesmente a influência institucional da mesma forma como qualquer agente econômico integraria ou assimilaria qualquer outra informação relativa aos processos produtivos eventualmente auxiliando à tomada de decisões.
{8} A vida humana é, de fato, concebida como uma sucessão de decisões relativas às diversas metas estabelecidas pelo indivíduo: desta forma, é normal que o indivíduo consagre tempo à coleta de informações; mas sobretudo, que ele encontre e potencialize ao máximo os meios existentes a sua disposição que realizarão economias ou reduzirão os custos associados à busca de informações, potencializando também, por consequência, a capacidade de atingir seus objetivos e fins.
“The making of decisions is costly, and not simply because it is an activity which some people find unpleasant. In order to make a decision one requires information, and the information must be analysed. The costs of searching for information and of applying the information to a new situation are such that habit is often a more efficient way to deal with moderate or temporary changes in the environment than would be a full, apparently maximization-utility decision.” (Becker; Stigler p. 82)
{9} As decisões são atos econômicos custosos: tomar uma decisão supõe, antes de qualquer coisa, que se procure informações. A racionalização do processo de decisão consiste simplesmente em assimilar e compreender o conjunto de informações disponíveis para melhor tomar decisões relativas aos meios que garantirão que fins determinados serão atingidos. A coleta de informações é custosa em recursos e, principalmente, em tempo e energia. E aí entra o papel e a invenção do que chamamos ‘instituições’: um certo número de regras escritas e não escritas que, ao codificar práticas e costumes permitem a economia de tempo e potencializam a eficiência da tomada de decisões. Os costumes e a tradição, neste sentido, podem ser concebidos como uma espécie de tecnologia institucional.
{10} Determinadas tecnologias institucionais compreendem, por exemplo, características das regras de contratos comerciais, constituições políticas, normas internas ao funcionamento de determinadas empresas, ou ainda, determinados traços de uma cultura, e ainda, os costumes e as tradições: as formas mais antigas de instituições sociais regendo a vida e as relações em determinada sociedade. O nível de custos de transação associados à procura, acesso e tratamento de determinado tipo de informações não depende somente do nível de progresso técnico e desenvolvimento, ele é também função da tecnologia institucional vigorando.
Explicação Beckeriana da Rabugice dos Velhos
{11} As tradições resultam do investimento de tempo e recursos na aquisição de conhecimento e informações sobre o ambiente no qual estão inseridos os indivíduos, mas também, sobre as competências que devem ser utilizadas e associadas a este conhecimento. O respeito do hábito, ou do costume, é vantajoso quando se torna um jeito mais eficiente de lidar com determinadas situações e com as mudanças temporárias ou definitivas no ambiente no qual se insere o indivíduo. Elas dependeriam de sua capacidade e potencial a reduzir os custos de busca de informação.
{12} No entanto, por limitar a liberdade dos indivíduos, os constrangimentos sociais como as tradições também implicam custos. Eles delimitam o escopo de decisões dos indivíduos, o que inclui decisões que potencialmente aportariam benefícios. Mas estes custos devem ser contrabalanceados pelos benefícios que o indivíduo obteve com a economia de recursos, obtida principalmente graças à redução do tempo de procura e triagem de informações, decorrendo da adesão à norma. Estas economias podem promover benefícios porque, diante de determinadas situações e diante de outros indivíduos, o agente pode adotar determinado tipo de comportamento sem que isto necessite perda de tempo com a colheita e tratamento de informações. Ilustremos a idéia e princípio com a comparação, feita por Becker e Stigler em seu artigo, entre a resposta dos jovens e dos velhos face à mudança no ambiente.
{13} Becker e Stigler consideram o ambiente como o conjunto de preferências dos demais e o conjunto das normas vigentes. Notem que esta maneira de ilustrar o paradigma parece ir diretamente ao ponto do desafio colocado pelas críticas à teoria econômica tradicional. Na verdade, ao propor o estudo da reação de indivíduos – que poderiam ter preferências idênticas – a uma mudança no ambiente, ou mudança nas preferências alheias e instituições, o que se faz, justamente, é entronizar no exame do comportamento do agente econômico racional a influência dos fenômenos de pressão social, ou respeito à adesão aos costumes e tradições.
{14} A adesão a um costume é uma decisão racional levando em consideração os custos e benefícios de se aderir ou não a esta norma. Toda mudança no ambiente (preferências, normas ou tecnologias) impõe ao indivíduo um problema de busca de novas informações e reaprendizagem. Quem diz reaprendizagem, diz novos custos: por um lado é necessário esquecer ou ignorar uma parte do que já foi aprendido, ou substituir um procedimento por um novo procedimento; por outro lado, é necessário investimento na assimilação das novidades.
{15} Mais velho é o indivíduo, maior seria o esforço de reaprendizagem que ele deve exercer: esforço associado ao que é necessário deixar de lado ou ignorar dentre o que já foi aprendido como procedimento (desinvestimento); e ao esforço de aprender novos procedimentos. Respectivamente, mais o indivíduo é jovem, menor o esforço de desinvestimento – visto que ele aprendeu um número relativamente menor de coisas –, e maior o potencial de rentabilidade dos novos conhecimentos adquiridos através do investimento em aprendizagem, visto que o jovem dispõe de um tempo maior de vida para gozar desta renda.
{16} Para os mais velhos, além do desinvestimento ser mais custoso – eles supostamente aprenderam mais coisas por terem vivido mais tempo –, o investimento é também mais oneroso, visto que eles beneficiarão de uma renda menor pelo simples fato de ter menos tempo de vida. Não é difícil compreender, a partir desta demonstração, o fato dos mais velhos se prenderem mais às tradições – métodos eficientes de redução dos custos e de busca de informações que eles já conhecem –, ao invés de aderirem imediatamente às novas tecnologias institucionais e mudanças no ambiente, que propõem novos procedimentos permitindo economias em custos de acesso à informação. Por mais que estes procedimentos sejam melhores que os mais antigos, os mais velhos, realizando uma ponderação dos custos (desinvestimento e investimento) e benefícios (economias em matérias de custos de acesso, tratamento e armazenamento de informações), racionalmente decidem não realizar ou fazer tanto esforço quanto o jovem para adquirir e assimilar estes novos procedimentos. Notem que não foi necessário modificar essencialmente a escala das preferências dos agentes para explicar a reação diferente face à mudança de ambiente (g).
Ponto de Adesão à Tradição
{17} Este artigo deveria ter terminado no ultimo parágrafo, mas gostaria de seguir algumas intuições por mais que elas possam se revelar extremamente incongruentes ou simplesmente lapsos de entendimento. Insinuaria que maiores os custos de transação e custos de acesso à informação, maior seria o número de indivíduos propondo e oferecendo soluções normativas que procuram enquadrar e limitar estas despesas; maior também é o número de indivíduos consentindo aderir a uma norma que potencialmente reduza estes custos. Por um lado, maiores os custos aos quais o indivíduo deve se submeter para ter acesso à informação, mais constringente será a norma social que ele proporá para que estes custos sejam potencialmente controlados. Por outro lado, menor será o número de indivíduos dispostos à endossar a norma constringente e renunciar a sua liberdade decisional. A tecnologia institucional eficiente, que poderá eventualmente se impor de maneira espontânea, e adquirir o caráter de costume e tradição, é esta que potencializará os ganhos individuais economizando os custos de acesso à informação.
{18} Dito de outra forma, maiores os custos de acesso à informação e custos de transação, mais os indivíduos vão procurar um consenso, inscrição tácita ou informal de normas permitindo a melhor coordenação de suas atividades e relações. Conforme o constrangimento da norma aumente, menores são os custos de acesso à informação, visto que a norma tende a enquadrar e limitar, cada vez mais detalhadamente, o escopo de ações individuais e escopo de liberdade de decisão dos indivíduos. Menor o escopo de liberdade das decisões, maior o risco que a rigidez da norma termine por diminuir o número de ações e decisões rentáveis do ponto de vista individual.
{19} Disto decorreria que a demanda social, procurando estatuar formal ou informalmente uma norma, seria uma função da sua capacidade a reduzir os custos de acesso, tratamento e busca de informações, sem no entanto, demasiadamente constranger as liberdades de decisão. Do confronto entre ofertas individuais em matéria de normas constringentes e demandas individuais por harmonização dos costumes visando reduzir os custos de acesso à informação, decorreria a decisão consensual sobre a norma e o aparecimento de instituições como estas associadas às tradições.
{20} Notem que, se esta perspectiva tiver alguma espécie de sentido, é pelo fato dos custos de transação e custos de acesso à informação existirem, ou serem positivos, que a adesão à tradição é engajada. Se os custos de acesso à informação fossem nulos, os indivíduos não teriam interesse algum em aderir à norma social, visto que ela apresentaria e representaria apenas um potencial negativo, associado à perda de suas liberdades.
Nota
(g) Os encontros de domingo na igreja se revelaram um meio eficiente de economizar custos associados à coleta de informações sobre pretendentes, um eventual meio de escolher melhor a sua futura esposa. Os mais velhos conhecem este mecanismo e procedimento de economia dos custos de acesso à informação. Mais recentemente surgiu, no entanto, um novo mecanismo similar satisfazendo praticamente a mesma função: os sítios de encontro em internet. O mais jovem tem todo interesse em aprender esta nova tecnologia, onde ele poderá obter um recolho do perfil e das características das pessoas com as quais ele pretende lidar. Esta tecnologia é ainda mais eficiente e abrangente pois, além de não restringir o grupo de pretendentes às seguidoras de Jeová, ela permite mais facilmente a consulta, comparação e apreensão de maior número de informações. O mais velho, por mais solteiro que seja, não teria o mesmo ímpeto ou tanto interesse em fazer confiança a esta nova tecnologia comparativamente ao jovem, por mais que tenham as mesmas preferências. Não seria um espanto que este mesmo indivíduo mantivesse a igreja como mecanismo de economia de custos de acesso à informação. Em primeiro lugar, o desinvestimento necessário é alto: mesmo que o indivíduo tenha a opção de frequentar unicamente sítios de encontro das testemunhas de Jeová, ele renunciaria às economias que a frequentação da igreja garantiria, lugar onde ele dispõe de informações mais precisa não somente sobre a pessoa, mas ainda, sobre sua família ou real situação financeira. O investimento em assimilação é também importante, o indivíduo deve aprender a lidar com a internet, estudar os sítios que deve frequentar, além de pagar ou cotizar eventualmente uma mensalidade, devendo ainda passar horas investigando a vida da pessoa antes do primeiro encontro. Por ser velho, a renda que o matrimônio engendrará é potencialmente menor que para o jovem, que dispõe de toda a vida para fazer sua esposa lavar suas roupas ou fornecer serviços de carinho e afeto.
Referências
Becker, G.; Stigler, G., De Gustibus Non Est Disputandum, American Economic Review, vol. 67 (1), p. 76-90, 1977.
Lepage, H., Demain le capitalisme, Collection Pluriel, Librairie Générale Française, 1978.
Mill, J. S., A System of Logic, 8th Ed., London 1972.
North, D. Institutions, The Journal of Economic Perspectives, vol. 5 (1), p. 97-112, 1991.
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